domingo, 8 de agosto de 2010

Crônica de Zezé Di Camargo sobre seu pai, seu Francisco


“Sempre admirei a sabedoria do velho Chico. Diante de sua humildade e a mínima formação escolar, meu pai arranjou uma forma irreverente para me ensinar a “ler as horas’, como ele dizia.

Eu deveria ter uns seis anos e já era apaixonado por relógio. Isso faz tempo... A gente morava num vilarejo, lá em Pirinópolis, e raramente ia para a cidade ver as lojinhas. Uma vez, eu vi uma foto de um relógio numa revista, na verdade numa página solta, que embrulhava uma compra que eu, menino de recados, fazia para a minha mãe, na mercearia. O que tinha dentro já nem lembro mais. Mas peguei aquela página e corri para mostrar ao meu pai:

“Pai, quero um presente deste! É muito bonito. Assim eu vou saber as horas?”

“Vai, meu filho. Mas o melhor é entender a força do tempo. Melhor que ler as horas, é saber lidar com o tempo”.

Foi aí, que entre tantas perguntas, reação típica nesta fase da vida, eu indaguei: “Mas quem inventou o relógio?”

Como é bem a linha de seu Chico, ele contou uma longa história. Hoje, eu sei que é o estilo dele, mas na época eu acreditava naqueles causos, mas isso só o tempo mostrou. Pois bem, assim nasceu a lição das horas, segundo meu pai: “Diz a lenda que para medir o tempo, os deuses criaram o relógio. Queriam algo redondo como a Terra. Mas havia aqueles que não concordavam com o formato em círculo e criaram a ampulheta. Dentro, os grãos de areia serviam de medidores.

Por que a areia, pai? – era mais uma pergunta. Qual criança nessa idade, ouve sem perguntar?

Por uma questão simbólica, foi a bela resposta do meu pai. E foi explicando: como o tempo, a areia escorre tão rápido das nossas mãos, voa... Voa como o tempo. Com o passar do tempo, o universo conspirou: a era dos deuses passou e a época dos ponteiros, indicando segundos, minutos e horas chegou. E nada melhor para contar o tempo do que os números. É uma questão matemática.

Já que o mundo é redondinho e dá voltas, o relógio, símbolo maior do tempo, tinha de ser assim: como a Terra.

E tudo voltou a ser como antes, como queriam os deuses. Pelo menos é o que diz a lenda.

Mas, pai, e o relógio, você vai comprar?

O tempo passou e eu só fui colocar um relógio no pulso um ano depois. Nem por isso, deixei de aprender as horas. E foi com mais uma atitude exemplar por parte de meu pai. Foi ele que fundou uma escola no Sítio Novo, onde morávamos, para que as crianças aprendessem a ler e a escrever. Assim, aprendemos também as horas.

Mas, quando subi no palco pela primeira vez, ganhei um relógio. Foi minha mãe que deu e meu pai fez questão que o presente viesse dela. Hoje, entendo a lição: é a mulher que gera a vida, exibe uma barriga redondinha como a Terra e tem o dom de mostrar que, para existir vida, precisa ter tempo. As horas, bem, ora as horas, são apenas detalhes neste mundo que dá tantas voltas. Como os ponteiros de relógio, claro.”
Rosely Rodrigues
Foto: Rosa Marcondes